O Milagre em Sant´Anna
Título original: Miracle at St. Anna
De: Spike Lee
Com: Derek Luke, Michael Ealy, Laz Alonso
Género: Acção, Drama, Thriller
Classificacao: M/12
EUA/ITA, 2008, Cores, 160 min.
Um filme em "flashback" sobre Train, Bishop, Stamps e Hector (Omar Benson Miller, Michael Ealy, Derek Luke e Laz Alonso), quatro soldados negros da 92.ª Divisão Buffalo Soldiers, encurralados numa pequena cidade italiana durante a Segunda Grande Guerra.
Os quatro separam-se do regimento após um dele salvar Ângelo (Matteo Sciabordi), um rapazinho traumatizado pela guerra e que apenas parece ouvir Arturo, o seu amigo imaginário. Isolados nas montanhas, para lá da linha do inimigo, eles vão quase esquecer o campo de batalha ao reencontrar a generosidade e a compaixão no seio das pessoas da aldeia, principalmente através do seu novo pequeno amigo.
Um épico sobre a honra, a amizade e o racismo realizado por Spike Lee, adaptado do romance de James McBride que é também responsável pelo argumento.
2 recensões ao filme
Há pano para mangas para vários filmes em O Milagre em Sant’Anna, de Spike Lee, cujo grosso do enredo se passa durante a II Guerra Mundial, na Itália invadida pelos Aliados, centrando-se em quatro soldados de infantaria negros que se refugiaram numa aldeola da Toscana depois de um sangrento embate com tropas alemãs. Um deles, um enorme sulista simplório e de bom coração, salvou da morte um menino italiano que nunca viu um negro na vida e lhe chama Gigante de Chocolate (o que seria impensável se Spike Lee não fosse quem é...). Escrito por Joseph McBride com base no seu romance homónimo, Milagre em Sant’Anna é parte filme de II Guerra Mundial convencional (mas com o lembrete de que o exército da “grande democracia” americana que combatia as forças do Eixo era racialmente segregado, e que alguns dos seus oficiais brancos tinham um desprezo olímpico pela vida dos soldados negros), parte tentativa do realizador para mostrar que a participação dos soldados de cor americanos naquele conflito foi importante (recorde-se a sua reacção biliosa ao recente díptico da II Guerra Mundial assinado por Clint Eastwood, As Bandeiras dos Nossos Pais/Cartas de Iwo Jima), parte intriga “policial” em jiga-joga entre o passado e o presente, e parte história de amizade e amor inter-racial sentimentalona (há também um subenredo amoroso entre um dos militares negros e uma rapariga da aldeia italiana, filha de um fascista local). E é um filme com um tal volume de trânsito narrativo, que a certa altura, Spike Lee até tem de recorrer a flashbacks dentro dos flashbacks para lidar com tudo o que tem em mãos para contar. Esta história pesadamente atarefada e a abarrotar de personagens, que quer ser várias coisas ao mesmo tempo e ainda ter espaço para incursões “pedagógicas” sobre o racismo nos intervalos dos acontecimentos, forçou o realizador a “esticar” o filme quase até às 3 horas de duração, o que lhe acaba por ser fatal. O Milagre em Sant’Anna é um exemplar caso cinematográfico de “mais olhos que barriga”. Sobra uma fulgurante sequência de combate logo no início, e a curiosidade da personagem do fascista italiano da aldeia ter uma caracterização muito mais simpática, e ser mais tolerante para com os soldados negros, do que a maior parte dos americanos brancos.
Sérgio Abranches in Timeout
The big black one
A razão que sobra ao filme em representação política e sociológica - o papel dos soldados negros americanos na II Guerra - falta-lhe em profundidade poética e filosófica.
O défice de representação da população negra na iconografia americana, especialmente no cinema, é uma preocupação antiga de Spike Lee. Já a exprimiu em diversas ocasiões - recordem-se as picardias com Woody Allen e Clint Eastwood - e é um assunto que cruza a generalidade dos seus filmes, e nalguns casos os explica. Isso talvez nunca tenha sido tão verdade como com "O Milagre em Sant''Anna", filme feito em resposta directa à sub-representação (ou à omissão) dos negros americanos nas efabulações cinematográficas em torno da II Guerra Mundial. Um filme de guerra "reivindicativo", se quisermos, "blaxploitation" sem "xploitation" porque Spike Lee não aponta à margem, aponta ao centro. E o centro é o cinema clássico, e é, quem mais podia ser?, John Wayne. Se vemos John Wayne a visitar um filme de Spike Lee podemos estar certos que é uma visita política e que Wayne aparece, antes de mais nada, como símbolo ideológico. É o prólogo de "O Milagre em Sant''Anna": um homem negro, que viremos depois a reconhecer como um ex-soldado protagonista desta história, sentado em casa a ver John Wayne a ganhar a guerra no "Dia Mais Longo", e depois um berro de indignação, qualquer coisa como "esta guerra foi nossa também!".
Ao filme não faltam, portanto, nem clareza de propósitos (reparar uma usurpação) nem ambição (filmar heróis negros que desafiem o estatuto mítico de Wayne). Propósitos e ambições tão nobres e estimulantes como outros quaisquer. O que falta ao filme é estar à altura deles. Para um filme que tão agressivamente se começa por definir, espanta (e desaponta) a singular ausência de ferocidade com que Lee conta esta história sobre uma companhia de soldados negros na Toscana, em 1944, durante a reconquista aliada da Itália. Essa ferocidade - a de outros filmes seus baseados na "questão racial", como, por todos, "Do the Right Thing" - dá lugar a uma moleza narrativa (facto a confirmar com "Malcolm X": Spike Lee e o "épico" não jogam lá muito bem), enredada num complicado flash-back que, acabamos por perceber, só se justifica pelas piores razões (o sentimentalismo choramingas da cena final, o pior fecho de filme da obra de Spike Lee). Os combates e os "horrores da guerra" (como o massacre em frente da igreja) são filmados naquele realismo maquinal que faz da irrepreensibilidade técnica uma medida de indiferença - da indiferença de quem filma e da indiferença de quem assiste.
Evidentemente há um fundo romântico na guerra vista por Spike Lee. O que ele quer é extrair de lá outros "heróis", mas "heróis" na mesma. A crítica da mitologia volve-se em reprodução da mitologia com uma cor de pele diferente. Melhor ou pior, essa tarefa certamente se cumpre. Mas é uma tarefa que deixa lastro na construção de um olhar cinematográfico sobre a guerra - um lastro que se traduz numa candura, numa crença inquestionada, e quase paternalista, na bondade das suas personagens. O que é um drama, se cotejarmos o filme de Spike Lee com muitos dos filmes de guerra (Ford, Walsh, Fuller...) que ele implicitamente critica: a razão que lhe sobra em termos de representação política e sociológica falta-lhe em profundidade poética e filosófica. Não espanta que os planos finais pareçam saídos de um filme de Tornatore. Ao pé dos "Nus e os Mortos" de Walsh ou do "Big Red One" de Fuller, "O Milagre de Sant''Anna" é apenas um simpático e rudimentar filme bem intencionado.
Luís Miguel Oliveira, in Público
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